Por Gert Schinke, ecologista e historiador, membro do Coletivo Ecolhar – 28/11/23
UM POUCO SOBRE O ‘UNIVERSO DO SANEAMENTO’
De praxe o termo ‘saneamento básico’ remete a quatro setores: resíduos sólidos, drenagem (que abrange a rede pluvial), esgotamento sanitário e água potável, que conformam este ‘básico’. Por óbvio, se existe o ‘básico’, deverá existir o ‘não básico’, tudo aquilo que remete para uma profusão de ‘rejeitos especiais’, estes originados pelo modo de vida consumista da nossa sociedade, tais como rejeitos radioativos, hospitalares, oleosos, etc, etc, cada qual manejado e com destino próprio, o que nos leva para um universo bastante amplo e complexo. O que vemos acontecer com o processo de reciclagem convencional, por exemplo, é apenas um dos inúmeros processos de fazer retornar materiais às suas respectivas ‘cadeias de produção’, lá onde serão reprocessados e reaproveitados, caso a caso e em certa escala, todavia jamais em 100% em relação ao volume produzido industrialmente. Na Wikipédia, você encontrará o seguinte sobre ‘saneamento’: “Saneamento é a atividade relacionada ao abastecimento de água potável, o manejo de água pluvial, a coleta e tratamento de esgoto, a limpeza urbana, o manejo de resíduos sólidos e o controle de pragas e qualquer tipo de agente patogênico, visando à saúde das comunidades. É o conjunto de procedimentos adotados numa determinada região visando a proporcionar uma situação higiênica saudável para os habitantes.”
O aumento da escala/proporção de reciclagem se faz historicamente na adoção de ‘políticas públicas’ por via da formulação de planos e programas de reciclagem de diversos tipos, que deveriam estar vinculados com programas de ‘educação ambiental’, por exemplo, bem como com processos de manejo industrial, comercial e no âmbito doméstico, lá onde se produz o convencional ‘lixo’ de todo dia. Somente nesta última etapa é que entra o sistema de ‘coleta de resíduos sólidos’, que é financiado em Florianópolis pela TCRS – Taxa de Coleta de Resíduos Sólidos, cobrada anual e paralelamente ao IPTU. A PMF – Prefeitura Municipal de Florianópolis, depois de 30 anos promovendo ‘educação ambiental’, por via de repaginados programas promovidos em parceria com empresas e entidades civis, chegou agora a apenas 20% de reciclagem na capital, que abrange o descarte doméstico convencional e o comercial. Isso se configura um verdadeiro escândalo por si só, diante do que já se alcançou em outras praças, no Brasil e mundo afora.
Diante deste ‘escárnio ecológico’, já observado há décadas atrás, o MOSAL – Movimento Saneamento Alternativo, grupo criado em 2009 e ativo até 2016, propôs em 2010 a adoção de um ‘CARTÃO ELETRÔNICO’ para resíduos secos, todos aqueles passíveis de reciclagem convencional, que poderiam ser entregues em ‘centros públicos de coleta’, atribuindo aos materiais um ‘preço simbólico’, que, por sua vez, seria descontado da tal TCRS. Na prática, seria uma retribuição, em forma de dinheiro, para todas as pessoas que separassem os materiais (que tem valor econômico) em casa ou no trabalho, e os entregassem nos centros de coleta. Este incentivo, que ‘mexeria com o bolso’ de toda família e condomínio na cidade, certamente alavancaria o volume de materiais secos, já em parte separados, visando destiná-los à reciclagem. Mas a PMF na época ignorou solenemente esta ferramenta, tão disseminada em nosso meio social por via dos ‘aplicativos’ de todo tipo para atender a inúmeras finalidades, fazer compras, movimentos financeiros, mobilidade, etc.
O gráfico abaixo compara na linha do tempo de 2011 a 2021, as projeções entre os volumes de ‘lixo total’, em azul (dados da COMCAP) e o de ‘reciclados’, em vermelho, caso fossem adotadas as ações sugeridas pelo MOSAL nos idos de 2010, tais como a adoção do ‘cartão eletrônico’ e a instalação de uma rede de coleta de resíduos altamente descentralizada, espalhada por todo município.
Passados mais de 13 anos, hoje poderíamos estar beirando facilmente os 80% a 90% de reciclagem geral de resíduos sólidos, caso à época a medida tivesse sido adotada. Mas ela barrou na estupidez, ignorância e evidente conluio das autoridades municipais com o sistema atual de coleta e transporte de lixo para o aterro sanitário em Biguaçu, feito todo dia por uma imensa frota de carretas-caçambas gigantes (capacidade de carga de 40t cada), que proporcionam imenso lucro para a única empresa contratada para a tarefa. Noves fora, a adoção da proposta do ‘cartão eletrônico’ de reciclagem colide frontalmente com os interesses econômicos dessa empresa e seus inúmeros ‘associados obscuros’ que atuam nos bastidores para que tudo fique como está. E aqui não se trata de movimentar alguns ‘centavinhos’, mas de centenas de milhões de reais que anualmente são destinados pelo ‘caixa da PMF’ a manejar esta vergonhosa ‘exportação’ de lixo de Florianópolis para Biguaçu. Tudo isso rotulado sob o cânone do ‘desenvolvimento sustentável’, onipresente no discurso da PMF. Diante desta realidade, que se impõe faz décadas, a PMF adotou um programa chamado ‘lixo zero’, tendo como meta ‘zerar’ o lixo em 2030, meta totalmente fantasiosa e fora da realidade em face da forma como conduz a política de saneamento na capital, como vimos. Portanto, uma mentira ‘para inglês ver’, um programa meramente propagandístico, um bom exemplo do discurso de ‘maquiagem verde’ (greenwashing), tão propalado pela maioria dos atores políticos no mundo atual.
A figura abaixo compara as redes de ‘coleta centralizada’ da PMF-COMCAP (à esquerda) com a proposta de ‘rede descentralizada’ do MOSAL (à direita).
O cenário global, por sua vez, não se apresenta melhor neste quesito, porquanto nas últimas décadas se formaram ‘ilhas de plástico’ no Oceano Pacífico, ilhas flutuantes do tamanho de várias ilhas de Santa Catarina, que reúnem milhões de toneladas de plásticos jogados ao mar nos litorais da América do Norte e dos arquipélagos próximos à Ásia. A contínua poluição oceânica está levando ao colapso de recifes de corais nas costas do mundo todo, e tudo isso paralelamente à contínua ‘exportação’ de lixo de países europeus e os EUA para países na África, que se transformaram em verdadeiros ‘lixeiras’ dos chamados ‘países desenvolvidos’, inclusive recebendo rejeitos radioativos (das centrais nucleares) e altamente tóxicos de diversos tipos, aquilo que não querem ver depositado em seus próprios “quintais”.
A imagem de satélite ao lado mostra o gigantesco ‘vórtex’ no meio do Oceano Pacífico, algo inimaginável anos atrás, mas que a nossa “civilização” tornou possível existir. Também chamadas de ‘ilhas de plástico’, elas são “cortadas” como tortas pelos navios que transitam na área e já há quem propõe transformá-las em ‘territórios flutuantes’, atribuindo a elas nomes, tais como se faz com países e continentes. E um cenário surrealista vai tomando conta da paisagem planetária...
ALERTA. Saiba que a reciclagem, por si só, não altera o padrão de consumo, mas antes pelo contrário, pode até alavancá-lo, sob o ‘argumento falacioso’ de que, ao se encaminhar o descarte reciclável para a cadeia produtiva, tal como se faz com o resíduo seco que é separado, estar-se-ia, em tese, ‘economizando matéria prima’. Esta tese, no entanto, não se comprovou na prática, pois o consumo de matérias primas só aumentou nas últimas décadas no mundo todo, a despeito dos incontáveis processos de reciclagem adotados. Diante desse cenário (eco)alarmante, a dimensão da ‘pegada civilizatória’ sobre a natureza está muito alta, produz cada vez mais descarte, o que significa que é o consumo geral (e individual) que tem que diminuir drasticamente para que, ao menos, se produza uma estagnação no atual padrão de consumo e consequente volume de lixo (materiais). Ao certo, temos que caminhar para uma drástica diminuição no padrão de consumo, especialmente por parte das classes abastadas, maiores produtoras de lixos de todos os tipos. E consumo de bens significa consumir energia, outra esfera de atividades que redunda em enormes impactos ecológicos.
ENTENDA OS MODELOS BÁSICOS NO TRATAMENTO DE ESGOTOS E O ‘OLHAR ECOLÓGICO’
Basicamente, existem dois modelos de tratamento: o centralizado e o descentralizado, quando remetidos para os setores de ‘esgotamento sanitário’ e ‘resíduos sólidos’. Quando tratamos de ‘drenagem’, são as bacias hidrográficas que fundamentam o critério de abrangência espacial/geográfica desse sistema, o que, na prática, também normalmente é ignorado pela visão tecnocrática. O modelo que fundamenta os projetos e ações da CASAN-PMF é o ‘centralizado’ e ‘tecnocrático’, o que implica em dimensionar enormes redes de coleta que conduzem o esgoto para grandes estações de tratamento – as ‘ETEs’, que, por sua vez, ignoram bacias hidrográficas ao promoverem o bombeamento das águas servidas de uma bacia para a outra, bem como ignoram a energia e a infraestrutura necessária para tanto.
O diagrama abaixo compara esquematicamente os dois modelos lado a lado: à esquerda o ‘modelo centralizado’ e à direita o ‘modelo descentralizado’, representado por um conjunto colorido de ETEs de diversas dimensões e tecnologias distribuídas por toda ilha.
Resultante deste modelo centralizado e tecnocrático é a instalação de imensas ‘ETEs’ e seus respectivos ‘emissários’, por meio dos quais se descarta o ‘esgoto tratado’. Mais uma vez aí entra a heroica saga do ‘Coletivo MOSAL’, quando propôs um modelo ‘altamente descentralizado’ de tratamento de esgotos a ser implementado em toda a ilha, que atingiria a universalização, bem como aproveitaria grande parte das águas doces oriundas do tratamento para destiná-las ao lugar de onde provêm – suas respectivas bacias hidrográficas, o que seria o correto a fazer. Mas isto também foi solenemente ignorado pelas autoridades que manejam o esgotamento sanitário na ilha-capital – CASAN-PMF, consórcio que apresentou nos últimos anos um histórico de eventos catastróficos, senão ‘eco-trágicos’ na ilha, lembrando apenas dos casos Rio do Braz, Papaquara, rompimento da barragem na Lagoa da Conceição, dentre outros. É longa a lista de escárnios ao bom senso e medidas que iriam de encontro á crise hídrica, ecológica, emergência climática, etc, questões que o mundo hoje clama desesperadamente. Resulta que hoje apenas 50% do esgoto é efetivamente tratado na ilha-capital, embora exista rede instalada em quase 70% na área urbana da mesma, segundo a CASAN. Este cenário coloca Florianópolis como uma das piores capitais brasileiras no ranking do quesito ‘tratamento de esgoto’, embora tudo isso é apresentado na mídia, que virtualmente tudo aceita, como uma aposta no ‘desenvolvimento sustentável’, da mesma forma como no caso dos ‘resíduos sólidos’, como vimos.
Detalhe: A CASAN há décadas aufere mais rendimentos na capital do que efetivamente investe em retorno com obras. O mais notável é perceber, ao longo de todo esse tempo, a contumaz omissão do setor hoteleiro/turístico e imobiliário da capital com a forma pela qual a PMF e a CASAN, sua ‘concessionária’, tratam a questão. Esse enredo atinge sucessivas administrações municipais e estaduais, totalmente condescendentes com esse grotesco cenário.
ALERTA. Antes de haver o ‘esgoto’, havia água tratada, cujo tratamento implica em enormes custos econômicos e ecológicos no sistema convencional, ao esgotar rios distantes, tratar estas águas e transportá-las dezenas de quilômetros adiante. Grande parte do consumo convencional, doméstico, comercial e industrial, sequer precisaria utilizar ‘água tratada’, que custa caro, pois bastaria utilizar água colhida das chuvas em cisternas próprias instaladas nos prédios, galpões, edifícios e casas, o que não se faz normalmente. De outra parte, quando descartada, a água tratada também é ‘mal descartada’, pois a rede da ‘água servida’ não é separada nas edificações em uma rede própria para as ‘águas cinza’ (aquelas dos chuveiros, pias e lavação de roupa) e outra rede destinada às ‘águas marrons’ (aquela resultante dos vasos sanitários). Este sistema único de coleta acaba misturando duas categorias (de águas servidas) que dificultam enormemente o tratamento e o respectivo descarte em face do imenso volume que é produzido.
Tudo isto na contramão do que ecologistas sanitaristas diagnosticam e clamam há décadas para que se implante, a exemplo de ‘banheiros secos’ em residências que os comportem. Existe uma infinidade de outros sistemas eficientes de tratamento de esgoto para pequenas aglomerações urbanas, vilas e condomínios, grande parte dos quais sequer precisaria estar ligada a uma grande rede coletora, ao tratarem in loco suas ‘águas servidas’. Isto, no entanto, não é ‘de interesse’ para quem advoga a fórmula do ‘modelo centralizado’, altamente energívoro e superdimensionado, mas que, via de regra, e não contraditoriamente, implica em investimentos bilionários, movimentando muito, muito dinheiro, projetos que se materializam por via de ‘grandes obras’, embaixo e em cima da terra, próprio para placas e inaugurações festivas, ainda que por vezes somente da ‘pedra fundamental’. Obras monumentais só interessam a grandes empresas construtoras e seus agentes, colaboradores associados presente na máquina pública, na política e em inúmeras instituições, inclusive acadêmicas. São daquele tipo tão comum de mega-obras que, uma vez iniciadas, jamais são concluídas, prestando-se aos corriqueiros ‘aditamentos contratuais’, e, na mesma toada, os escândalos de corrupção diariamente retratados no noticiário.
ENTENDA A NOVA PROPOSTA DE TRATAMENTO DE ESGOTOS DA CASAN-PMF PARA A REGIÃO DO SUL DA ILHA FRENTE AO ‘MODELO DESCENTRALIZADO’
Até o ano de 2009 a CASA-PMF pretendia instalar na região sul da Ilha três ‘ETEs’, uma em cada distrito, do Pântano do Sul, do Ribeirão da Ilha e do Campeche, projeto este que foi abandonado depois de então, para se reunir em torno de uma ÚNICA ‘ETE’, cuja instalação seria no Rio Tavares (a que hoje está inconclusa).
A imagem ao lado, tirada de uma apresentação da CASAN em 2009, mostra as ETEs do Ribeirão da Ilha e a do Pântano do Sul (em vermelho), que foram suprimidas (virando EEEs – Est. Elevatórias de Esgotos) para dar lugar a somente uma ETE, a do Rio Tavares (em azul claro), que, por sua vez, também trataria esgoto vindo da Lagoa da Conceição, pasmem. A proposta que já se apresentava como muito centralizada (com 3 ETEs), passou a ser hiper-centralizada, com uma única ETE para tratar toda a região sul da ilha.
Este projeto, por sua vez, implicaria em instalar um gigantesco ‘emissário submarino’ que levaria um imenso ‘rio de água doce tratada’ para o oceano em frente ao Campeche, na altura do atual bairro ‘Novo Campeche’. Deu-se assim, através desta guinada de 180º no projeto, um claro afastamento de um modelo medianamente descentralizado (aquele anteriormente destinado aos distritos), para um ‘modelo altamente centralizado’, operando na contramão de tudo o que a ciência e tecnologia hoje propõem na linha de conservação da água, de maior amplitude no alcance do tratamento de esgotos, que tem na tão propalada ‘universalização’ uma das metas centrais a alcançar. Por via de grande pressão política e judicialização, sempre tendo á frente o bravo MOSAL, em certo momento até processado judicialmente pela CASAN, conseguiu-se impedir o despautério da construção do mega-emissário submarino pretendido para o Campeche. Agora, passados 14 anos, a CASAN-PMF apresentou um “novo” projeto, que, em verdade, é o retorno ao seu projeto anterior, pasmem, aquele mencionado no início e vigente até 2009, propondo novamente a instalação de pelo menos três ‘ETEs’ no sul da ilha, o que, em tese, configura-se como uma vitória, ainda que parcial, dos movimentos sociais envolvidos na resistência à mega-ETE e seu respectivo mega-Emissário pretendido na costa oceânica do Campeche, como vimos. Recentemente, a PMF anunciou a contratação de uma ‘equipe técnica’ para formular o ‘projeto técnico’ para este conjunto, lembrando que inexiste qualquer tratamento no sul da ilha até o presente. Diante desta nova formulação, a CASAN agora propõe um dimensionamento bem menor para a ETE do Rio Tavares, porém, dando descarte do seu efluente (esgoto tratado) para um emissário a ser instalado ao norte do ‘Aterro da Via Expressa Sul’, diante do bairro Saco dos Limões, fator que despertou resistência e muitas dúvidas por parte da população local, bem como de todos os demais, sobre os impactos que advirão nas águas da Baía Sul, já tão combalida e afetada em face do imenso volume de esgotos e efluentes que também recebe de toda a orla continental dos municípios de São José e Palhoça. O mesmo se passa na Baía Norte, receptáculo de esgotos e efluentes na área continental de Florianópolis, São José, Biguaçu já tão combalida e afetada em face do imenso volume de esgotos e efluentes que também recebe de toda a orla continental dos municípios de São José e Palhoça. O mesmo se passa na Baía Norte, receptáculo de esgotos e efluentes na área continental de Florianópolis, São José, Biguaçu.
A imagem ao lado, oferecida pela própria CASAN, retrata o “novo” projeto para a ETE do Rio Tavares, redimensionada para menor, porém descarregando o
efluente tratado para a Baía Sul (na sua parte norte), na altura do Saco dos Limões (traçado em azul claro). Em outra frente, a tal ‘equipe técnica’ iniciou estudos na área da planície do Pântano doSul, próximo ao local onde a comunidade sugeriu a instalação da ETE naquele distrito, quando da discussão e deliberação do então PDP - Plano Diretor Participativo, nos idos de 2007 a 2009.
A imagem à direita, também da CASAN, mostra em amarelo as áreas de cobertura das redes de coleta de esgotos no Distrito do Pântano do Sul, muito distante do atendimento a todas as comunidades nele presentes. Por sua vez, o diagrama abaixo mostra, lado a lado, os cenários propostos anteriormente pela CASAN - somente uma ETE no Rio Tavares (Campeche) na coluna da esquerda, e o proposto pelo MOSAL, contando com 9 ETEs espalhadas nos três distritos do sul da ilha, indicadas na coluna à direita.
ALERTA: A melhor proposta é que, antes de qualquer coisa, os aventados estudos técnicos devam ser direcionados às inúmeras possibilidades de tratamentos de esgotos em todos os três distritos do sul da ilha ao mesmo tempo, conforme o ‘modelo descentralizado’, pois, diante do cenário de inexistência de tratamento, deparamo-nos com uma clara ‘janela de oportunidade’, visando estudar a implantação, ali onde possível, de micro-ETEs e sistemas ecológicos autônomos, que resultarão em diminuir a dimensão destas três ETEs propostas pela CASAN-PMF. Somente feitos estes estudos e diagnósticos, sob uma visão ecológica que se coaduna com o ‘modelo descentralizado’, é que se poderá definir todo o conjunto de equipamentos necessário para dar conta do tratamento de esgotos na região, justo aquilo que o bom planejamento na esfera pública indica que deve ser feito: evitar-se o desperdício de dinheiro público; aumentar a eficiência do tratamento; e, acima de tudo, se economizar água doce, um dos grandes desafios que estão colocados na mesa, hoje e no horizonte próximo, como veremos a seguir.
A imagem abaixo compara, lado a lado, os modelos para a região sul da ilha do MOSAL e o da
CASAN (à esquerda), no qual aparecem as áreas de cobertura das redes de coleta propostas, como se percebe, longe de atingir uma razoável cobertura para atender toda a população nesta vasta região ilhoa. O mapa à direita, produto de uma ‘oficina popular’ realizada no Clube Catalina, no Campeche, em 2009, despretensioso enquanto mero ensaio, mas cientificamente bem orientado, propõem a instalação de uma profusão de ETEs com dimensões bastante diferenciadas, atendendo ao modelo descentralizado, neste caso, altamente descentralizado, em oposição ao altamente centralizado, assinalado pelo círculo azul claro que indica a localização da mega-ETE do Rio Tavares, agora redimensionada.
O SANEAMENTO DIANTE DO NOVO ‘PLANO DIRETOR’ DA CAPITAL
A especulação imobiliária, promovida historicamente pelo setor da construção civil, é a maior
responsável por este calamitoso cenário que hoje se apresenta na ilha-capital, totalmente dependente de água doce do continente, mas que, a despeito dessa situação, continua a da capital, em fins de 2022, em revisão ao anterior de 2014. Trata-se de perseguir uma ‘tragédia anunciada’, de calamidade hídrica permanente, uma espécie de ‘queima do futuro’, que hoje já se faz sentir pelo virtual colapso da Lagoa do Peri em épocas de seca, bem como de constante falta de água potável em várias regiões da ilha, como vimos. Políticas públicas que remeteriam para o Código de Obras, dentre outros exemplos, que promoveriam a conservação de água doce, poderiam ser implementadas há muitos anos, paralelamente à adoção de um Plano Diretor que se voltasse para os desafios decorrentes da ‘emergência climática’ e todo o cenário metropolitano que agora já se apresenta dramático, e, num futuro próximo, ainda muito pior. Tudo isso parece não dizer respeito ao ‘setor da construção civil’ na ilha-capital e na região metropolitana, ao qual só interessa engordar o faturamento e lucro com construção de prédios, condomínios, etc. A mais “generosa” projeção, quanto ao crescimento populacional da capital até 2040, indica algo em torno de um milhão de habitantes, incluindo aí a área continental. Mas, se, diante deste montante populacional, em torno de “apenas” 800 mil habitantes então morarem sobre a ilha, certamente não haverá água potável para supri-los, bem como tão pouco “espaço” para circulação de veículos na agora já congestionada malha viária, totalmente voltada ao atendimento de veículos particulares, em detrimento do transporte público, outro ‘déficit’ histórico na capital. Na mesma proporção em que parece incrementar-se o tratamento de esgoto na capital, a passos de tartaruga, cresce a população, embora esta bem “mais rápida” que uma tartaruga, crescimento esse que é ‘alavancado’ pelo incremento de índice construtivo generalizado permitido pelo novo Plano Diretor, inclusive ignorando a legislação ambiental, como no caso das ‘AUE’, ao zonear banhados e mangues como ‘área edificandi’, dentre outras medidas ilegais e claramente inconstitucionais na nova lei do PD.
O diagrama abaixo apresenta projeções populacionais para a capital a partir dos ‘potenciais
construtivos’ permitidos pelo anterior PD (LC 482/14), representado nas cores amarelo e
cinza, cenário que se apresentava em 2022, ao lado da projeção para o ano de 2040,
antevendo o montante de um milhão de habitantes, diante da aprovação do novo PD,
sancionado em janeiro de 2023.
ALERTA: Aqui é pertinente lembrar a ‘III Conferência Municipal de Saneamento Básico’, transcorrida entre junho e julho de 2023, outra conferência protocolar do tipo ‘para inglês ver’, que deveria ter sido
feita ANTES do processo de revisão do Plano Diretor, justamente para subsidiar a discussão sobre a capacidade de atendimento de água potável, tratamento de esgotos, resíduos sólidos e drenagem
urbana na capital. Totalmente esvaziada por força do descaso da PMF para com o tema, que é
‘histórico’ como já vimos, ao final somente 32 ‘delegados’ aptos a votar deliberaram propostas diante de 550 mil habitantes na capital, outro escárnio à democracia participativa, tal como transcorreu o próprio processo de revisão do Plano Diretor (2021 e 2022). Ambos foram conduzidos de forma a impedir a ampla participação popular e acolher suas propostas, especialmente as oriundas dos movimentos sociais. Em meio a diagnósticos mentirosos, argumentos claramente falaciosos e pífia participação popular, a ver pelo número de delegados aptos ao voto, de concreto o resultado foi um documento laudatório de propostas que retomam as da conferência anterior, de 2018, também conduzida no mesmo estilo, mas que agora sequer aponta para a solução dos problemas que advirão no futuro diante da aprovação do novo Plano Diretor em fins de 2022, indutor de um cenário catastrófico.
CENÁRIOS FUTUROS PARA A ILHA E A ‘REGIÃO METROPOLITANA’
Florianópolis “importa” da região metropolitana continental 70% do volume da água potável que consome, segundo a CASAN, sendo que 20% são retirados da Lagoa do Peri e outros 10% por via de ‘ponteiras’ espalhadas em várias regiões da ilha, que vem a completar os 100%. Os tais 70% ‘importados’, bombeados por via de um duto que passa por uma das pontes de concreto, são provenientes das bacias dos rios Cubatão e Biguaçu, os quais estão sob intensa pressão para dar conta da imensa ‘Região Metropolitana de Florianópolis’, em constante expansão urbana, futuramente turbinada pela conclusão do ‘Anel Viário’, que será concluído em 2024. Não é preciso ser um ‘expert’ no assunto para perceber que estamos diante de um ‘colapso hídrico’ de dimensão regional, e que, nos últimos anos, já se apresenta por repetidas vezes na ilha, na forma de ‘falta de água’, especialmente durante a temporada de verão. Por outro lado, a ‘água doce tratada’ dos rios Cubatão e Biguaçu não retorna às suas respectivas bacias hidrográficas, mas sim, é remetida para o oceano na forma de esgoto (mal)tratado pela CASAN, por via de inúmeros emissários submarinos posicionados nas baías sul e norte e costa leste. A outra parte das ‘águas servidas’, esta sem qualquer tratamento, acaba também chegando ao oceano que cerca a ilha, por via dos inúmeros estuários de córregos e pequenos rios que nele desaguam ao longo da costa ilhoa, a exemplo do Rio Tavares, Rio Ratones, etc, promovendo poluição oceânica em todo o seu entorno, poluição agravada nas baías sul e norte com o esgoto originado no continente, como vimos, também muito mal tratado pela CASAN.
ALERTA: A continuar este processo de acelerado consumo de água potável, combinado com o avanço por sobre áreas fundamentais para sua conservação, tais como as pretendidas nove ‘AUEs’ sobre banhados, aquíferos, mangues, restingas e matas, nos próximos anos estaremos diante de um colapso total desses fundamentais ‘vetores de suporte da vida’ na região: água, diversidade biológica, vida no oceano em volta da ilha e na orla metropolitana. Esses processos de erosão sistêmica, fruto dos inúmeros impactos da sociedade sobre a natureza, agora se combinam com o fenômeno da ‘emergência climática’, que aprofunda e acelera ainda mais as bases de sustentação da vida no planeta, provocando desregulação no clima, eventos extremos, tais como secas e chuvas catastróficas, como assistimos acontecerem com maior frequência nos últimos anos, não somente por aqui mas em todo mundo, a par da acelerada contaminação dos oceanos, como vimos acontecer com as ‘ilhas de plástico’. Porém, a par disso tudo, alguns poucos empresários e dirigentes políticos estarão com suas ‘burras cheias de dindin’, com o qual poderão viver suas vidas glamorosas de príncipes em redomas de riqueza e fartura, talvez sequer sobre a ilha-capital, mas sabe-se lá onde, em algum ‘paraíso fiscal’. Em modo ‘noves fora’, o que assistimos, ao vivo e em cores, nos últimos anos no Brasil, o que se estende ao mundo atual, é um evidente ‘déficit de governança’ local, regional e mundial, cenário na qual as elites não conseguem administrar os desafios que se impõe diante delas, com vistas a garantir uma sobrevida digna aos atuais e os futuros habitantes do planeta. Baixo o ‘mot’ do movimento ecológico ‘pensar globalmente e agir localmente’, comecemos, portanto, por Florianópolis, onde o padrão de governança deve cambiar radicalmente, tanto no poder executivo quanto no poder legislativo, para que se opere uma inversão desta tendência rumo ao colapso sistêmico.
A imagem ao lado, em verdade uma ‘charge’, indica que se impõe uma profunda mudança na estrutura e na atuação do estado brasileiro, entrelaçado que está com o sistema político atual, engessado e articulado, de alto a
baixo, no atendimento dos interesses das elites econômicas e político/partidárias, a ver pela forma como conduzem os investimentos do estado por via das emendas parlamentares propiciadas pelo ‘orçamento secreto’, dentre outras tantas ‘pérolas’ que aqui demandariam várias páginas para arrolar.
No entanto, e isso é tão trágico quanto o que se passa em ‘patropi’, a governança internacional também se apresenta inepta para operar qualquer alteração no cenário global, vide a incapacidade de lidar com as inúmeras guerras em andamento, bem como incapaz de lidar com as questões que remetem para o colapso ecológico planetário. Este, que é pautado não pela dinâmica das guerras locais e interesses geopolíticos, que acabam se alterando ao longo do tempo, mas obedece a outra dinâmica, que se apresenta sob a forma de eventos descontínuos e cada vez mais agudos, e com ocorrências numa escala de tempo mais larga, medida em décadas e séculos, a ver pelo fenômeno do aquecimento global. Este teve início com a ‘revolução industrial’, que escalou a emissão de gases com o uso do carvão, posteriormente turbinado com o emprego do petróleo, daí a expressão ‘era do carbono’, e no presente se apresenta na forma de ‘emergência climática’. Ao expressar o ‘modus operandi’ das elites mundiais com ‘blá-blá-blá’, a jovem Greta Tumberg resumiu nada mais que a verdade nua e crua sobre os convescotes regados a champanhe e caviar, a sucessão de incontáveis encontros internacionais “em prol de meio ambiente”, conferências e COPs, etc, etc, que, ao longo de décadas, empurraram com a barriga a solução dos problemas, tal como vimos acontecer aqui em âmbito local, na capital de Santa Catarina, em relação ao esgotamento sanitário, lixo, mobilidade urbana, só mencionando estas poucas questões.
Lembrando novamente da máxima ecológica: ‘Pensar globalmente e agir localmente’, é hora de dar um basta no modo pelo qual a PMF trata historicamente saneamento na capital, tendo a CASAN como concessionária no tratamento e fornecimento de água, bem como o tratamento de esgotos, e a COMCAP para dar conta dos resíduos sólidos. No que afeta à região sul da ilha, estamos diante de uma ‘janela de oportunidade’ que nos oferece a possibilidade de fazer a coisa certa, ainda melhor do que se aventava nos idos de 2009.
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